“No Brasil a gente não faz pesquisa, a gente faz milagre”, segundo pesquisadora Mariangela Hungria

Published on: July 8, 2025

“O agricultor brasileiro ouve falar dos biológicos na agricultura há quase 70 anos…”

Mariangela Hungria da Cunha é pesquisadora na Embrapa Soja e recebeu em 2025 o Prêmio Mundial da Alimentação.

Hungria é engenheira agrônoma e mestre pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, com doutorado pela  Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, e pós-doutorado pela Cornell University, University of California – Davis e University of Seville.


AgriBrasilis – Qual sua trajetória na pesquisa sobre bioinsumos? 

Hungria – Eu sempre quis muito ser cientista. Quando eu tinha oito anos, minha avó me deu um livro sobre microbiologistas, o que fez eu me apaixonar pela área. Isso numa época em que não se falava de cientistas mulheres.

Entrei em agronomia na metade da década de 70, já com a convicção de que eu queria fazer algo mais focado em biologia, para ajudar a alimentar o mundo. Nessa época, Norman Bullock tinha acabado de ganhar o prêmio Nobel da Paz por causa da Revolução Verde, que tirou milhões de pessoas da fome através do melhoramento de plantas e adubação química pesada. 

Eu queria trabalhar com biológicos, mas o pensamento dominante era focado em adubação química para obter uma produção agrícola que, com sorte, daria para sustentar a população brasileira e quem sabe até exportar. Mesmo assim, eu acreditava nos biológicos, e, quando terminei a graduação, fui fazer mestrado e doutorado focada em trabalhar com o processo microbiano, a fixação biológica do nitrogênio, que pode substituir pelo menos parcialmente os fertilizantes químicos. 

Fui fazer o doutorado com a pesquisadora mais importante do Brasil na área, a Dra. Johanna Döbereiner, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, com a tese na Embrapa, hoje Embrapa Agrobiologia, onde a Dra. Johanna era a chefe.

Em 1991, após voltar de um período de formação nos EUA, acabei me sediando em Londrina, na Embrapa Soja, e comecei um laboratório do zero. Foi muito difícil, até porque já é difícil fazer ciência no Brasil, mas isso me deu a oportunidade de criar o meu próprio laboratório, o meu grupo de pesquisa, onde eu tinha total autonomia. 

Sempre tive certeza de que existia um espaço muito importante para os bioinsumos na agricultura, substituindo os fertilizantes químicos. Não era o caso de pensar em pequena escala, em agricultura familiar ou orgânica: eu tinha que pensar em produtividade máxima, porque eu queria atingir realmente o Brasil, e eu sabia que se fosse possível obter produtividade máxima para os grandes agricultores, também iríamos conseguir atingir os pequenos.

Foi em 1991 que eu considero que realmente me tornei uma profissional, focada nessa estratégia de máxima produtividade. Tudo começou com a inoculação anual da soja. Naquela época, as pessoas não achavam que poderia ser benéfico aplicar todo ano as bactérias que fazem a fixação biológica do nitrogênio na soja.

Eu mostrei para o agricultor que era possível obter aumento médio de 8% por ano através da inoculação anual com bactérias fixadoras de nitrogênio na soja. Daí, os sojicultores falaram: “mas a gente não planta só soja, a gente tem milho, trigo… a gente quer alguma coisa pra esses cultivos”. Por isso, fui procurar outras bactérias e achei o Azospirillum brasilense, que tem uma contribuição menor, mas é importante para a fixação biológica de nitrogênio. Por outro lado, o Azospirillum brasilense propicia uma grande síntese de fitohormônios que faz as raízes crescerem. 

Outro passo importante foi a combinação do Bradyrhizobium + Azospirillum, configurando aquilo que a gente chama de co-inoculação da soja. Essa continua sendo a minha última etapa de pesquisa, com a qual quero terminar a minha carreira acadêmica e de pesquisa com pastagens, porque eu tenho o sonho de ajudar na recuperação de pastagens degradadas no Brasil. Nós já temos resultados excepcionais mostrando que isso é possível via microrganismos.

AgriBrasilis – Por que a adoção dos inoculantes foi tão aceita no Brasil? Qual é a importância desses produtos?

Hungria – Foi aceita porque não é fruto de um trabalho de curta duração. Só no meu caso, são 40 anos de pesquisa. Antes de mim, existiram outros especialistas focados na área, como a doutora Johanna Döbereiner, a professora Joane Rui Jardim Fredo. O agricultor brasileiro ouve falar dos biológicos na agricultura há quase 70 anos, e pode vislumbrar os resultados dessa pesquisa que dura décadas.

Nós temos grande colaboração com a extensão agropecuária, que leva essas tecnologias para os agricultores. Nós da pesquisa também sempre apoiamos o desenvolvimento tecnológico. Estivemos lá na implementação das primeiras indústrias de inoculante e continuamos com ampla colaboração até hoje.

Somos liderança mundial no uso desses produtos, que a gente chama de inoculantes. No caso da soja, por exemplo, 85% de toda a área cultivada usa Bradyrhizobium, ou a coinoculação com Bradyrhizobium + Azospirillum. Isso é muito importante porque, só no caso da última safra de soja, o que a gente economizou por conta da adoção dessas bactérias equivale a US$ 25 bilhões, que de outro modo a gente teria tido que gastar com fertilizantes químicos. 

“A taxa de uso e crescimento dos biológicos na agricultura está muito superior à dos químicos no mundo todo…”

AgriBrasilis – Quais os desafios para a adoção dessas tecnologias?

Hungria – Um dos desafios é ampliar o uso dos inoculantes para outras culturas. Existe uma ótima adoção na soja, na qual a gente tem mais tradição. No caso do milho, a adoção começou há uns 15 anos, mais ou menos, e a gente já está com uma adoção muito boa. Por exemplo, no milho de inverno, mais de 40% da área adota os inoculantes.

Nós temos soluções de microorganismos para mais de 80 espécies de plantas. Então, nós precisamos expandir a adoção. O desafio é expandir para outras culturas e principalmente levar inoculantes para o pequeno agricultor. Essas tecnologias funcionam para o grande e para o pequeno agricultor, mas infelizmente acabam sendo mais usadas pelos grandes. Inclusive, a gente praticamente não encontra embalagens menores de inoculantes para pequenos agricultores.

AgriBrasilis – O investimento em P&D para bioinsumos é adequado?

Hungria – Nenhum investimento em P&D no Brasil é adequado, em nenhum ramo de ciência. No Brasil a gente não faz pesquisa, a gente faz milagre. É muito difícil fazer P&D no Brasil porque a gente não tem os recursos necessários. É ridículo o que a gente recebe se comparado com EUA, Europa, Austrália, Ásia. Dessa forma, é difícil a gente se manter atualizado na pesquisa, para conseguir conduzir pesquisa de ponta. 

Por exemplo, a gente pode receber uma certa quantia e depois passar dois anos sem receber nada. Muito do dinheiro que a gente recebe é “virtual”, ou seja, ele acaba não chegando. Isso tudo é muito difícil e desestimulador. Por isso que a gente tem cérebros deixando o país, o que é um absurdo, porque esses cérebros que deixam o Brasil são os melhores que temos aqui.

Em geral, os pesquisadores que deixam o país tiveram alto investimento de ensino público e gratuito. Eles cursaram as melhores universidades públicas, fizeram mestrado e doutorado nessas universidades, e depois vão para o exterior. Não podemos culpá-los, porque eles querem fazer as carreiras deles, querem aplicar os conhecimentos que adquiriram.

Nós temos que dar condições para os jovens e para os mais velhos, como eu, porque a gente tem conhecimento e sabe o que a sociedade quer e consegue dar retorno, mas é necessário uma constância de investimento. Precisamos de um orçamento realmente independente das “flutuações de humor” dos nossos governantes.

AgriBrasilis – Quais tendências a senhora vê no mercado de bioinsumos?

Hungria – As tendências são de alto crescimento. A taxa de uso e crescimento dos biológicos na agricultura está muito superior à dos químicos no mundo todo, mas no Brasil ainda mais. Nós somos os líderes de uso desses insumos na agricultura, mas mesmo assim nós temos muito espaço para crescer, porque ainda o uso de biológicos representa apenas 10% – 15% em relação aos químicos, se a gente considerar toda a agricultura. 

 

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