Não será proibida a produção “on farm” de bioinsumos

“…foi aprovado na Câmara dos Deputados em 27/11/2024, o Parecer do Projeto de Lei 658 de 2021…”

Luis Rangel é engenheiro agrônomo, ex-Secretário de Defesa Agropecuária e ex-Diretor de Análise Econômica e Políticas Públicas do MAPA.

Carlos Venâncio é engenheiro agrônomo, ex-coordenador-geral de agrotóxicos e afins do MAPA.

Rangel e Venâncio são membros do Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS), organização da Sociedade Civil, criada em 15 de abril de 2011, com domicílio, sede e foro no município de São Paulo, SP, com o objetivo de discutir temas relacionados à sustentabilidade do agro.


O uso de organismos biológicos nas lavouras não é novidade, mas vem ganhando escala surpreendente. Fundamento básico do Manejo Integrado de Pragas, o uso de estratégias combinadas sempre considerou microrganismos como alternativas necessárias para o sucesso da prática. Entretanto, o número de alternativas disponíveis no mercado era muito reduzido até 10 anos atrás.

Diversas biofábricas foram sendo implementadas para produzir inimigos naturais para controle de pragas, como os casos na cana-de-açúcar com a Cotesia flavipes e os Trichogramma spp., atendendo mais de 3 milhões de hectares no Brasil. Essa realidade começou a ser consolidada ainda na antiga lei de agrotóxicos (7.802/1989), já que organismos de controle biológico sempre foram considerados agrotóxicos.

Existem cerca de 629 produtos biológicos registrados no Brasil para controle de pragas. Aproximadamente 20% dos produtores rurais no planeta adotam esses bioinsumos, sendo que no Brasil 55% das propriedades os utilizam, contra 6% nos EUA. Considerando bioestimulantes, a relação é de 50% contra 16%. O Brasil conta com pelo menos 170 biofábricas, podendo tratar 25 milhões de hectares, com um mercado que cresce até 20%ao ano.

Dados do MAPA apresentam 803 produtos registrados de baixo risco, somados produtos biológicos e produtos aprovados para agricultura orgânica. Esse número inclui feromônios e outros produtos que não seriam passíveis de produção “on farm”.

Recentemente, as normas dos insumos microbiológicos foram atualizadas por meio da Portaria Conjunta MAPA/IBAMA/ANVISA n° 1/2023. Além dessas, em 2009, os produtos fitossanitários da agricultura orgânica foram incluídos de maneira diferenciada nos procedimentos de registro na antiga Lei, permitindo abordagem para a produção própria de agrotóxicos, ou “on farm”.

O contexto dos inoculantes é diferente. Regidos pela legislação de fertilizantes, não é possível encontrar menção legal explícita sobre a produção desses insumos para uso próprio. Entretanto, a compostagem vem reciclando resíduos e gerando fertilizantes orgânicos, em linha com políticas de mitigação de gases de efeito estufa. Para comercialização, no entanto, inoculantes precisam do registro no MAPA.

A dispensa de registro para produção de agrotóxicos para uso próprio foi regulamentada originalmente por meio do Decreto n° 6.913/2009. No Decreto n° 10.833/2021, a isenção foi aclarada no sentido de também especificar sistemas de cultivos onde a produção própria de fitossanitários com uso aprovado para a agricultura orgânica seria aceita, incluindo “em sistemas de produção orgânica ou convencional”.

O conceito de produção própria foi estabelecido pelo atual Programa Nacional de Bioinsumos, como: “produção de condicionadores de solo, inoculantes, produtos fitossanitários, de comunidade de microrganismos com uso aprovado para a agricultura orgânica ou de agente biológico de controle, regulamentado em norma específica pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a ser utilizada exclusivamente em área de produção agrícola pertencente a mesma pessoa física ou jurídica ou em áreas de produtores rurais em regime de associação constituída para esta finalidade”.

Mesmo com essas definições, esteve sempre vedado o comércio desses produtos, mesmo isentos de registro. O registro é fundamental e inseparável do direito de comércio dessas substâncias. O registro deve assegurar o comércio justo, numa relação idônea entre produtores e consumidores, balizadas por regras de identidade e qualidade.

Pela legislação vigente, nos casos de produtos fitossanitários, apenas produtos aprovados para a agricultura orgânica podem ser isentos de registro, quando produzidos para uso próprio. E devem estar listados nas normas do MAPA por meio das “Especificações de Referência”.

A nova legislação de agrotóxicos (Lei n° 14.785/23) traz a obrigatoriedade de cadastro de “estabelecimentos produtores, manipuladores, importadores e exportadores, as instituições dedicadas à pesquisa e à experimentação, os distribuidores, os profissionais legalmente habilitados, os agricultores usuários e as prestadoras de serviços para terceiros na aplicação de agrotóxicos”. Fica clara também a necessidade do cadastro das biofábricas, mesmo que para produção própria.

A Lei n° 14.785/23 instituí o Sistema Unificado de Informação, Petição e Avaliação Eletrônica, que busca implementar, manter e disponibilizar dados e informações sobre TODOS os produtos e produtores, com comercialização ou não (Art. 58, Lei n° 14.785/23) o que abrange fundamentos do Art. 22, da mesma lei, que cria o Sistema Unificado de Cadastro e de Utilização de Agrotóxicos. Agricultores que produzem produtos fitossanitários para uso próprio, mesmo isentos de registro, precisam estar cadastrados no sistema integrado do MAPA.

No entanto, a expectativa que o SISPA sintetize, em 360 dias, o ambiente de transação de dados entre todos os atores especificados na Lei, considerando a cadeia de produção, comércio, uso de agrotóxicos, é utópica.

Fabricantes, revendas, engenheiros agrônomos prescritores de receita, aplicadores treinados e agricultores, deverão estar cadastrados ou registrados a partir de dezembro de 2024. Provavelmente, qualquer solução a ser apresentada não deverá contemplar a todas as funcionalidades previstas na Lei n° 14.785/23, em sua primeira versão. Com certeza, o cadastro de agricultores com instalações “on farm” não estará entre as prioridades.

Quando isso acontece, mesmo sendo compreensível, devemos considerar o que reza a legislação concorrente.

A Lei n° 9.784 de 29/01/1999 dita que devem ser obedecidos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Em especial, consideramos a observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados, nesse caso o direito ao registro ou cadastro junto a nova lei de agrotóxicos.

Recentemente, com a Lei n° 13.874, de 20/09/2019, temos que “a liberação da licença, da autorização, da concessão, da inscrição, da permissão, do credenciamento, ou do cadastro (grifo nosso), transcorrido o prazo fixado, e com o silêncio da autoridade competente, refletir-se-á em aprovação tácita para todos os efeitos”.

Na lei de agrotóxicos, fica explícito que deverá haver simplificação e desburocratização de procedimentos e a redução de custos e do tempo necessário para conclusão das análises dos processos.

Em um recente artigo publicado, especialistas analisaram como a transição regulatória poderia ser feita, considerando que mais de 51 atos normativos infralegais ainda versam de maneira efetiva sobre temas da nova Lei de Agrotóxicos. Com as conclusões dos autores, é possível compreender que ritos administrativos mais orientados a questões específicas devem permanecer válidos, a fim de resguardar a eficiência da administração pública e a segurança jurídica.

A única conclusão possível é que não existe disposição acerca de proibição da produção “on farm”. Produtos agrotóxicos aprovados para agricultura orgânica que sejam produzidos para uso próprio, mesmo tendo encerrado o prazo de 360 dias para implementação do SISPA na Lei n° 14.785/2023 de 21/12/2024, contados a partir da sua publicação, não tem impedimento de continuarem sendo produzidos. Garantias ao produtor rural para mantê-lo produzindo seus bioinsumos devem considerar Leis e normas infralegais em uma interpretação quanto a sua especialidade ou temporalidade, mas principalmente sobre sua conexão com os objetivos do Estado.

Considerando a ausência de regulamentação específica quanto ao cadastro de biofábricas para uso próprio, é adequada ao detentor de tal estrutura a apresentação de protocolo eletrônico no âmbito do MAPA. Esse procedimento deve cumprir a exigência legal presente no Art. 22, § 1º, da Lei n° 14.875/2023, e garantir de pleno direito, a produção “on farm”, enquanto perdurar à inexistência de um sistema ou de ao menos orientações administrativas específicas para cadastro.

Há ainda uma questão a observar, que pode resolver esse caso. Em atendimento ao Decreto nº 10.139, de 28/11/2019, o Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras e/ou Utilizadoras de Recursos Ambientais, prevê a inscrição de empresas que se enquadrariam nessa situação.

Esse procedimento, que pode ser realizado pelo órgão competente (federal, distrital, estadual ou municipal), no caso de licença de instalação ou operação de empreendimento e para exercício de atividades, como no caso dos bioinsumos, resolveria a questão.

Nesse caso, valeria uma análise sobre redundância regulatória. Embora não exista proibição de haver redundância de registros ou licenças, é recomendável que órgãos públicos coordenem ações para evitar registros concorrentes sobre o mesmo produto.

Com tudo isso, foi aprovado na Câmara dos Deputados em 27/11/2024, o Parecer do Projeto de Lei 658 de 2021 que consolida discussões acerca do tema, avançando em uma regulamentação necessária sobre Bioinsumos. Com a edição desse marco legal, será possível apartar produtos de controle biológico e outras dezenas de produtos de origem natural, do rol de agrotóxicos ou de fertilizantes sintéticos. A nova lei trará regras para tramitação e tratará dos casos de produção própria (“on farm”) como isenta de registro. O texto prevê essa isenção nos casos em que não houver comercialização.

Nesse mesmo texto, podemos observar diferentes disciplinamentos para a produção própria. Além do cadastro das biofábricas, obrigatoriedade que não se aplica a agricultura familiar e comunidades tradicionais, várias regras para o transporte dos bioinsumos foram estabelecidas, além das exceções de acesso ao Sisgen.

A produção própria de bioinsumos deverá ser documentada pelo usuário (devendo ser guardadas por 5 anos), seguir regras a serem definidas de boas práticas de fabricação e não poderão utilizar produtos comerciais para fins de multiplicação, a exceção de inóculos registrados para esse fim.

Esse marco legal traz alterações importantes nas leis de agrotóxicos e fertilizantes, mas principalmente na lei de proteção de dados, incluindo no rol de proteção contra uso comercial desleal, de informações relativas aos resultados de testes ou outros dados não divulgados apresentados às autoridades competentes.

Mesmo que exista legitima discussão sobre a necessidade de regulamentação específica sobre esses produtos, estes continuam sendo considerados fundamentais para diversas políticas já em andamento. Ou seja, mesmo que haja considerável nível de insegurança jurídica mensurada pelos especialistas, não é razoável pensar em risco para a descontinuidade do avanço da adoção de práticas sustentáveis reconhecidas, como são evidentemente os bioinsumos.

A maior clareza que a nova legislação de bioinsumos trará para a produção “on farm” não prescinde da necessidade de regulamentação pelo Poder Executivo de diversos artigos, incluindo a construção de um sistema de cadastro para biofábricas.

Não será a falta de sistema eletrônico que recepcione o cadastro que interromperá a trajetória ascendente de produção e uso de tecnologias biológicas pelos agricultores. Nem tampouco a nova legislação, que está em fase final das discussões no Congresso, definirá todas as balizas do processo regulatório.

É adequado observar que no texto da nova lei existirá a alusão a “garantia da continuidade da produção de bioinsumos para uso próprio, bem como o fornecimento de insumos necessários à produção para o uso próprio, até que a regulamentação e as instruções de boas práticas sejam publicadas”.

Muitas questões ainda serão abordadas sobre o tema. O uso próprio de bioinsumos deverá ser alvo de novo modelo de análise de risco, considerando questões de impacto a saúde e meio ambiente, quando da introdução de organismos exóticos, biotecnologia, ou mesmo de questões de proteção intelectual.

Entretanto, apenas com a edição do regulamento haverá o disciplinamento do processo de análise para cada tipo de produto, incluindo, a critério do órgão federal de defesa agropecuária, o eventual suporte das agências de vigilância sanitária ou ambiental, e de instituições de pesquisa.

A nova lei dispensará a necessidade de receituário agronômico para “a venda ou utilização dos bioinsumos, classificados como de baixa toxicidade”, fato que já era previsto pelos regulamentos anteriores, mas que carece de análise mais aprofundada, considerando a essência do receituário como instrumento de recomendação de boas práticas.

Seria impensável considerar que o desenvolvimento tecnológico desses bioinsumos, que consumiu centenas de milhões de reais de empresas privadas ou públicas (a Embrapa é uma das maiores detentoras de tecnologias disponíveis), não tenha sistema de remuneração adequado.

A dinâmica da regulação deve ser proporcional a necessidade do estabelecimento do mercado, nesse caso, da continuidade de investimento em soluções sustentáveis para a agropecuária, mas principalmente, para sua adoção universal.

Produtos parados nas prateleiras não mudam a realidade da agropecuária. O produtor quer eficiência no uso do insumo e renda com a sua safra. Bioinsumos certamente estarão no mercado e os modelos de negócio se adaptarão à realidade da agropecuária, devendo respeito a proteção intelectual e a segurança sanitária.