Tropicalização da soja em 100 anos do cultivo no Brasil

“A pesquisa agropecuária aumentou a produção de soja com inovações em ciência aplicada e básica…”

Alexandre Nepomuceno é chefe-geral da Embrapa Soja, formado em agronomia e mestre em fisiologia de plantas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com doutorado pela Universidade de Arkansas.


AgriBrasilis – A soja está no Brasil há 100 anos. Quais foram as etapas da tropicalização desse cultivo?

Alexandre Nepomuceno – A soja entrou no Brasil há cerca de 100 anos, com a introdução inicial no RS no final da década de 60, onde começou a ser plantada em maior escala para alimentação animal.

Após as décadas de 70 e 80, a soja expandiu-se para as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, principalmente graças ao trabalho de melhoramento genético. Sendo uma planta de fotoperíodo curto, ela requer uma quantidade específica de escuridão para florescer adequadamente, o que não ocorre nas regiões de baixa latitude, próximas ao Equador, onde ela tende a ter um ciclo mais curto e baixa produtividade.

A ciência brasileira, então, desenvolveu variedades adaptadas para crescerem e atingirem um tamanho ideal, introduzindo o que chamamos de “período juvenil”. Este trabalho foi complementado por melhorias na fertilidade do solo, correção da acidez dos solos tropicais e desenvolvimento de tecnologias de manejo e controle de pragas tropicais, como insetos, fungos, bactérias e nematoides presentes no país. Esse conjunto de avanços científicos permitiu a expansão da soja para todo o Brasil. A Embrapa teve um papel fundamental, desde a década de 80, ao desenvolver variedades para essas novas regiões, em parceria com o setor privado​.

“A edição gênica e a transgenia são tecnologias complementares que continuarão coexistindo”

AgriBrasilis – Quais foram as conclusões do levantamento sobre o perfil das lavouras de soja no país realizado pela Embrapa?

Alexandre Nepomuceno – O levantamento sobre o perfil das lavouras de soja no Brasil, realizado em parceria com o IBGE, mostrou que o país possui 267 mil sojicultores. Mais de 70% desses produtores estão nas regiões sul do Brasil, principalmente PR, SC e RS, onde o cooperativismo é muito forte.

A maioria desses produtores são pequenos e trabalham em sistemas de cooperativa, utilizando práticas sustentáveis, como o plantio direto, fixação biológica de nitrogênio e manejo integrado de pragas. Isso ajuda a desmistificar a ideia de que a soja é dominada apenas por grandes latifundiários, mostrando que ela sustenta muitas famílias e gera empregos diretos e indiretos. A Embrapa desenvolve tecnologias que atendem todos os perfis de produtores.

A cadeia produtiva da soja é de vital importância para a economia do país, sendo responsável por 6% do PIB em 2023, com 60% da soja em grão que foi produzida ano passado destinada para exportação.

AgriBrasilis – De que formas a pesquisa tem elevado a produção da oleaginosa?

Alexandre Nepomuceno – A pesquisa agropecuária aumentou a produção de soja com inovações em ciência aplicada e básica. A Embrapa Soja, por exemplo, investiu na revolução digital, com o uso de drones, imageamento por satélite e inteligência artificial, além da biotecnologia que introduziu plantas resistentes a herbicidas, reduzindo o uso de pesticidas e facilitando o plantio direto. Esse avanço foi possibilitado pela biotecnologia e, mais recentemente, pela edição gênica, que utiliza a técnica CRISPR para modificar características da planta. Esse processo permite explorar mutações já presentes na diversidade genética da soja.

Ainda sobre o CRISPR, a manipulação genética pode ser feita sem introduzir material genético externo, o que torna a edição gênica mais acessível e menos burocrática do que a transgenia, permitindo a entrada de empresas menores e médias. Como exemplo, o Brasil já liberou o primeiro tomate e a primeira batata editados, com melhorias feitas a partir de características naturais da própria espécie, e que, por isso, não são considerados transgênicos​.

AgriBrasilis – Qual é a importância do cooperativismo como agente de desenvolvimento da soja?

Alexandre Nepomuceno – O cooperativismo é essencial, principalmente nas regiões sul do Brasil, onde pequenos produtores se organizam para dividir custos e agregar valor aos produtos. No PR, por exemplo, as grandes cooperativas têm milhares de associados que produzem soja de forma integrada. As cooperativas reduzem custos e agregam valor, fabricando produtos como ração, margarina e óleo de soja. Este modelo cooperativo permite que pequenos produtores sejam competitivos e fortalece as economias locais​.

AgriBrasilis – Como é possível agregar mais valor aos produtos dessa cadeia, indo além da exportação de commodities?

Alexandre Nepomuceno – O Brasil já agrega valor à soja mantendo 40% da produção para o mercado interno, principalmente para a produção de carnes de aves e suínos, o que amplia a valorização da soja dentro da cadeia produtiva. Existem também outros usos industriais que podem ser incentivados, como biodiesel, asfalto, borracha e produtos de moda, como sandálias, seguindo o exemplo dos EUA. Esse país, por exemplo, utiliza o óleo de soja em pneus e solas de sapato, algo que o Brasil pode explorar mais para reduzir a dependência da exportação de soja em grão​.

AgriBrasilis – A edição genética vai eliminar a necessidade das variedades transgênicas?

Alexandre Nepomuceno – A edição gênica e a transgenia são tecnologias complementares que continuarão coexistindo. A edição gênica permite modificar características da soja com base em mutações que já existem na própria diversidade da planta. A técnica CRISPR possibilita que essas mutações sejam introduzidas de forma precisa, sem inserir DNA de outras espécies. No entanto, existem características que ainda dependem da transgenia, como a resistência a insetos, onde o DNA da bactéria Bacillus thuringiensis (BT) é inserido na planta para conferir resistência a pragas.

A bactéria BT, utilizada de forma segura desde a década de 40, é um exemplo da importância da transgenia, que também possibilita resistência a nematoides e à ferrugem asiática na soja. Apesar dos avanços da edição gênica, a transgenia continuará relevante para situações em que características desejadas não estão naturalmente presentes na soja. Além disso, a edição gênica é regulamentada de forma mais simples e menos burocrática.

AgriBrasilis – Como o RNAi pode revolucionar o controle de pragas no cultivo?

Alexandre Nepomuceno – A técnica de RNA de interferência (RNAi) permite desativar genes específicos de pragas sem afetar outros organismos, reduzindo assim o uso de defensivos químicos e o impacto ambiental. Com o RNAi, é possível desligar apenas o gene da praga-alvo, deixando outros organismos, como a planta de soja ou insetos benéficos, intocados. Isso representa uma nova ferramenta de controle de pragas, com um impacto mais sustentável, e tem potencial para transformar o manejo integrado de pragas na agricultura brasileira​.

 

 

LEIA MAIS:

Agroflorestas transformam carbono em oportunidades sustentáveis