“O Programa Nacional de Rastreabilidade de Agrotóxicos e Afins (PNRA), reacendeu o debate…”
Luis Eduardo Pacifici Rangel é conselheiro do Conselho Consultivo do Agro Sustentável – CCAS, ex-coordenador-geral de agrotóxicos e Afins ex-diretor de sanidade vegetal, e ex-secretário de defesa agropecuária.
A Portaria nº 805/2025, que institui o Programa Nacional de Rastreabilidade de Agrotóxicos e Afins (PNRA), reacendeu o debate sobre governança, eficiência regulatória e o real impacto das normas administrativas no setor agropecuário. O texto da Portaria, publicado aparentemente sem a obrigatória avaliação de impacto regulatório (AIR) e sem consulta pública formal, determinou obrigações em cascata para todos os elos da cadeia dos defensivos agrícolas, sob a justificativa de aprimorar o controle e a rastreabilidade dos produtos.
No entanto, um olhar mais atento revela que o PNRA não cria mecanismos inovadores, tampouco amplia garantias reais aos agricultores ou ao consumidor final. Pelo contrário, reedita obrigações já contempladas na Lei nº 14.785/2023, que modernizou a regulação de agrotóxicos no Brasil e previu mecanismos de controle e rastreabilidade dentro dos fluxos de prescrição, receituário e cadastro. Ou seja, a portaria repete dispositivos legais, não regulamenta complementarmente a lei e ainda e burocratiza com redundâncias regulatórias sem agregar efetividade.
Pior que a sobreposição normativa, é o custo social e econômico imposto sem lastro técnico. O texto obriga a implementação de tecnologia RFID nas embalagens, ignorando soluções igualmente eficazes e menos onerosas, como QR codes, blockchain e sistemas em nuvem. Essa padronização imposta sem justificativa técnica clara e sem análise de custo-benefício não apenas fere o princípio da razoabilidade administrativa, mas pode favorecer determinados fornecedores, criando barreiras artificiais à concorrência, em flagrante violação à Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019).
Outro problema grave diz respeito ao processo. A portaria foi publicada no mesmo dia do prazo final acordado para entrega do relatório de um grupo de trabalho (GT) instituído pelo próprio MAPA, formado por técnicos do governo e representantes da cadeia produtiva. O GT não apenas foi ignorado, como teve seu relatório contraditado. O que deveria ser um processo de construção democrática e técnica virou um exemplo de desrespeito à boa governança regulatória.
Um dos principais exemplos de descasamento da Portaria 805/2025 com a realidade do setor está na logística reversa de embalagens vazias de agrotóxicos. O Brasil conta com o sistema mais avançado do mundo em devolução e controle de embalagens, coordenado pelo InPEV (Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias). Desde sua criação, esse sistema retirou mais de 700 mil toneladas de embalagens do meio ambiente com taxas superiores a 94% de devolução em diversas regiões.
Esse modelo já garante rastreabilidade operacional: ao devolver a embalagem, o agricultor apresenta nota fiscal, cadastro, localização e quantidade aplicada, gerando um banco de dados robusto e auditável. Mais do que um sistema de logística reversa, trata-se de um sistema já estabelecido de controle de ciclo de vida do produto – exatamente aquilo que o PNRA pretende replicar, mas com menor eficiência e maior custo.
Além disso, a medida não se alinha a boas práticas internacionais de regulação. A experiência argentina, via SENASA, foi citada durante os debates técnicos como referência de um modelo adaptativo, construído com diálogo e calibrado à realidade tecnológica e logística dos atores envolvidos. O PNRA, ao contrário, improvisa soluções sem métricas de impacto, sem considerar o perfil heterogêneo dos produtores rurais e sem comprovar qualquer efeito concreto na redução de contrabando, falsificação ou riscos toxicológicos.
É importante lembrar que o Brasil já possui instrumentos de controle com razoável eficácia: o receituário agronômico eletrônico, os sistemas de comercialização fiscalizada (como os dados do IBAMA e do MAPA), e o controle via nota fiscal eletrônica já permitem traçar parte significativa dos fluxos legais de defensivos. A proposta de rastreabilidade, da forma como está, burocratiza ainda mais o sistema, ampliando o custo regulatório sem retorno proporcional.
Obviamente que arbitrariedades conduzidas dessa forma sugerem reações de mesma intensidade em sentido oposto. O Projeto de Decreto Legislativo (PDL nº 312/2025), apresentado pelo Deputado Pedro Lupion, propõe a sustação dos efeitos da portaria e levanta argumentos legítimos: ausência de AIR, desrespeito ao processo consultivo, imposição desproporcional de obrigações e incompatibilidade com a legislação vigente. Esses elementos não podem ser ignorados, sob o risco de institucionalizar uma regulação disfuncional e descolada da realidade do campo.
A rastreabilidade de insumos agropecuários é uma meta importante. No entanto, ela precisa ser construída com base em evidência, diálogo, viabilidade econômica e efetividade prática. Improvisação normativa, excesso de burocracia e escassa aderência técnica só nos afastam dos objetivos técnicos necessários. Defender a boa regulação não é ser contra o controle – é ser a favor de soluções eficientes, legítimas e proporcionais.
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