“É imperativo que a economia reduza o déficit fiscal, de modo a cortar o círculo vicioso do gasto, emissão monetária e inflação…”
David Miazzo é economista chefe da Fundação Agropecuária para Desenvolvimento da Argentina – FADA e doutor em economia pela Universidade Nacional de Rosário.
Miazzo é especialista em economia do setor agrícola e agroindustrial e foi consultor do USDA e do Banco Mundial.

David Miazzo, economista chefe da FADA
AgriBrasilis – O que está provocando o agravamento da crise econômica na Argentina? O que se espera no curto e médio prazo?
David Miazzo – A origem da crise é devido a um profundo déficit fiscal. Como a Argentina não tem acesso a crédito, esse déficit é financiado com a emissão monetária de um Banco Central que não é independente. O desequilíbrio fiscal torna-se um desequilíbrio monetário, com excesso crescente da moeda, que ninguém exige. Esse excesso se transforma em inflação e desvalorização.
No entanto, o governo quer evitar a desvalorização da taxa de câmbio oficial mantendo-a em um nível artificial de ARS $140/dólar. Para manter o câmbio nesse nível artificialmente baixo foram implementadas restrições cambiais que criam uma lacuna crescente entre a taxa de câmbio oficial e a taxa livre de ARS $300/dólar. Também são adicionadas restrições às importações, com o objetivo de limitar a perda de reservas. O desequilíbrio monetário gerado pelo desequilíbrio fiscal acaba se tornando um desequilíbrio cambial.
O aprofundamento do déficit fiscal levou a uma crise no mercado de dívida em pesos no início de junho, à qual se acrescentou a saída do Ministro da Economia Martín Guzmán e da Ministra Silvina Batakis, que não durou um mês no cargo. A soma desses fatores gerou o agravamento da crise que teve como sintoma o disparo do dólar livre de ARS $200 no início de junho para ARS $300 hoje, após um pico de ARS $350.
No curto prazo, espera-se: inflação no final do ano, que ficará entre 90% e 100% ao ano; uma desvalorização cada vez mais iminente da taxa de câmbio oficial devido ao baixo nível de reservas e a um governo obrigado a reduzir significativamente o déficit público com cortes de gastos e redução de subsídios através do aumento das taxas de serviço público.

AgriBrasilis – Quais os motivos da criação do “superministério” da Economia e quais as propostas do governo para combater a inflação e estabilizar o câmbio?
David Miazzo – A unificação dos ministérios pode ser vista como uma tentativa de alcançar maior coordenação da política econômica. É provável que tenha respondido a uma necessidade de mostrar um ministro com mais força e poder político, daí o conceito de “superministro”.
As políticas promovidas desde a chegada do novo ministro são duas: redução do déficit fiscal, que tem sido vista como insuficiente, mas é um passo na direção certa; redução da necessidade de emissão monetária em função de um déficit menor; aumento da taxa de juros efetiva anual para 96%.
Essas medidas devem ajudar a estabilizar a inflação e a taxa de câmbio livre, mas são insuficientes para serem consideradas um “plano de estabilização”, que reduz sistematicamente a inflação e gera estabilidade econômica. A frente cambial continua sem solução, com uma taxa de câmbio oficial atrasada.
AgriBrasilis – Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos da Argentina, a economia cresceu 6,3% no primeiro semestre de 2022. Isso é sinal de estabilização ou arrefecimento da crise?
David Miazzo – A economia teve alguma recuperação, mas ainda está abaixo dos níveis de dezembro de 2017. Por outro lado, espera-se um crescimento do PIB de 3,4% para todo o ano de 2022.
Parte do processo de crescimento é alimentado pelo consumo, impulsionado por uma fuga do peso argentino. O peso perde valor em ritmo acelerado, somado a uma diferença cambial superior a 100%, o que gera um impulso do consumo para tentar vencer a inflação e a desvalorização, mesmo com salários reais que perderam 21% do poder de compra em relação a dezembro de 2017.
AgriBrasilis – Como são as transações em moeda estrangeira, tanto para recebimentos quanto para pagamentos? Por que o governo restringe a compra de dólares?
David Miazzo – O governo mantém artificialmente uma taxa de câmbio oficial de ARS $140. Para tanto, ninguém pode comprar dólares nesse valor para economizar. Somente empresas podem adquirir esse dólar para pagar importações, com cada vez mais restrições.
O Banco Central compra dólares pelo valor da taxa de câmbio oficial de exportadores que são obrigados a liquidá-los. Sendo um valor artificialmente baixo, são gerados incentivos para importar o máximo possível e exportar o mínimo possível. Por isso, o Banco Central tem cada vez menos dólares.
Em um país normal, um aumento do câmbio, com incentivo às exportações e desestímulo as importações, resolve o desequilíbrio cambial. Na Argentina o governo tenta adiar esse processo. O problema é que continuam imprimindo moeda e gerando inflação, razão pela qual a taxa de câmbio do saldo é mais alta a cada mês, mas em um contexto de incerteza.
Apenas um pequeno grupo da população pode comprar no máximo US$ 200 por mês, no valor de ARS $230 (dólar solidário), e as despesas no exterior com cartão de crédito são pagas a ARS $245 (dólar cartão). Assim, como as pessoas podem comprar dólares pelo valor oficial, cria-se um mercado livre com uma taxa de câmbio que hoje está entre ARS $280 e ARS $300.
AgriBrasilis – Quais os diferentes tipos de dólar?
David Miazzo – Os tipos de dólar são:
Oficial: ARS $140;
Soja (oficial – 33% de imposto de exportação): ARS $94;
Solidário (oficial + 65% de imposto): ARS $230;
Dólar do cartão de turista (oficial + 75% de imposto): ARS $245;
Dólares grátis (sem intervenção do governo):
Azul (casual): ARS $290;
Mercado de ações (operado no mercado de ações): ARS $280;
Contado com liquidação (para transferências internacionais): ARS $295.
AgriBrasilis – A demanda global por commodities agrícolas teve impacto positivo na economia? A desvalorização do peso argentino beneficia os exportadores?
David Miazzo – A alta dos preços internacionais das commodities teve um impacto positivo. No primeiro semestre de 2022, as cadeias agropecuárias e agroindustriais geraram exportações de US$ 31 bilhões, 21% a mais que em 2021, mas as importações de energia, principalmente gás e combustível, custam mais.
A desvalorização beneficia os setores exportadores, o problema é que nos últimos dois anos ocorreu o processo inverso, que é o atraso cambial: a inflação na Argentina foi maior do que a alta do câmbio. Por exemplo, nos últimos 12 meses, a inflação foi de 71% e o câmbio subiu apenas 33,5%. O que sobra de diferença é a inflação em dólares, que gera perda de competitividade.
AgriBrasilis – As retenciones motivam reclamações recorrentes dos produtores agrícolas. Qual é sua finalidade e quais são seus efeitos na cadeia produtiva?
David Miazzo – O objetivo dos Direitos de Exportação é a arrecadação. O governo arrecadou mais de US$ 10 bilhões em 2021, principalmente da cadeia da soja, seguida pelo milho, trigo, outros grãos e carnes.
O efeito é negativo na produção, que fica estagnada quando poderia crescer, encolhe a fronteira de produção e gera menos incentivos para investir em insumos, como fertilizantes, ou melhorias, como irrigação.
As retenciones têm efeitos negativos na área semeada, nos rendimentos alcançados e em toda a economia, por meio da queda nos investimentos, na atividade econômica, no emprego e nas exportações.
AgriBrasilis – Quais serão os efeitos das medidas declaradas na carta de intenções ao FMI, como a meta de déficit fiscal de 2,5% do PIB? O país cumprirá os termos do acordo?
David Miazzo – É muito difícil para o país cumprir as metas acordadas com o FMI. Talvez com alguma maquiagem contábil, contudo, eles possam estar próximos.
É imperativo que a economia reduza o déficit fiscal, de modo a cortar o círculo vicioso do gasto, emissão monetária e inflação. As medidas estão na direção certa, mas ainda são insuficientes.
