“…muitas vezes o solo pode estar numa condição química excelente, mas comprometido do ponto de vista biológico.”
Ieda de Carvalho Mendes é pesquisadora da Embrapa Cerrados, formada em agronomia pela Universidade de Brasília, com doutorado pela Oregon State University.
AgriBrasilis – Em que consiste a bioanálise do solo (BioAs)?
Ieda C. Mendes – Até julho de 2020, quando um agricultor enviava uma amostra de solo para análise em laboratório, ele podia acessar apenas os aspectos químicos (componentes de acidez, macro e micronutrientes) e alguns aspectos físicos do solo (em grande parte, determinações dos teores de argila, silte e areia). Havia uma grande lacuna nessas análises, que era a ausência do componente biológico. E a biologia é a base da saúde do solo. Quanto mais biologia, mais saudável o solo. Quanto menos biologia mais doente/adoecido é o solo.
Lançada em julho de 2020, a BioAS é uma tecnologia desenvolvida pela Embrapa que agrega o componente biológico às análises químicas tradicionais de rotina de solos (pH, H+Al, P, Ca, K, Mg etc.). Consiste na análise das enzimas arilsulfatase e β-glicosidase, associadas aos ciclos do enxofre e do carbono, respectivamente, e preenche a lacuna deixada pela ausência do componente biológico nas análises do solo.
É como se fosse um “exame de sangue” do solo, que permite antecipar com mais antecedência problemas assintomáticos de saúde de solo, antes que eles acarretem perdas de produtividade nas lavouras.
A BioAS permite que o agricultor monitore a saúde de seu solo, sabendo exatamente o que avaliar (enzimas arilsulfatase e β-glicosidase), como avaliar (solo coletado na profundidade de 0 cm–10 cm), quando avaliar (após a colheita das lavouras) e como interpretar o que foi avaliado (via valores de referência que permitem avaliar, para cada tipo de solo, se o nível de atividade enzimática está baixo, médio ou adequado).
Hoje temos muitos dados de pesquisa que comprovam, que solos saudáveis são solos biologicamente ativos, produtivos e resilientes, que toleram melhor problemas de falta de chuva, promovem a saúde das plantas, pessoas e animais e preservam a qualidade ambiental, proporcionando, entre outros benefícios, o sequestro de carbono, o armazenamento e infiltração de água, a biorremediação de pesticidas e a mitigação da emissão de gases de efeito estufa.
AgriBrasilis – Como esse método se diferencia dos demais?
Ieda C. Mendes – A famosa frase de Leonardo da Vinci — “A simplicidade é o último grau da sofisticação” — traduz o espírito da BioAS. Embora avalie algo complexo — a saúde do solo —, ela foi desenvolvida para ser prática, acessível e fácil de entender. Com uma única amostra coletada no momento e na profundidade certos, o produtor pode avaliar o funcionamento biológico do seu solo, indo além das análises químicas tradicionais. Ao possibilitar a avaliação da saúde do solo, a tecnologia BioAS fornece subsídios para tomadas de decisões sobre o manejo, visando à manutenção de lavouras produtivas e sustentáveis em solos saudáveis. Um processo em que todos saem ganhando: o agricultor, a sociedade, o meio ambiente e, claro, o nosso planeta.
AgriBrasilis – A BioAs é capaz de substituir a análise química?
Ieda C. Mendes – A BioAS e a análise química do solo se complementam. Sem a parte química corrigida as plantas cultivadas não se desenvolvem, principalmente nos solos ácidos e de baixa fertilidade do Cerrado Brasileiro. Entretanto, muitas vezes o solo pode estar numa condição química excelente, mas comprometido do ponto de vista biológico. E esse comprometimento além de afetar a produtividade das lavouras, faz com que o solo fique menos resiliente. Ou seja, fique mais vulnerável por exemplo, por problemas de falta de chuva.
A BioAS está disponível para o agricultor desde julho de 2020. O custo de uma BioAS completa (envolvendo as enzimas, matéria orgânica, a análise de rotina de química de solo, e a granulometria) varia entre R$160 a 210,00.
“A capacidade que o solo tem de guardar em sua “memória” o tipo de manejo ao qual ele foi submetido está intimamente relacionada à sua parte viva...“
AgriBrasilis – Por que as enzimas avaliadas são consideradas uma “impressão digital do solo”?
Ieda C. Mendes – Os diferentes sistemas de manejo deixam “impressões digitais” distintas no solo, como operações de revolvimento mecânico ou a qualidade, quantidade e frequência com que os resíduos vegetais são aportados ao solo. Saber acessar essa “memória” do solo era um problema complexo que demandava uma solução simples.
A capacidade que o solo tem de guardar em sua “memória” o tipo de manejo ao qual ele foi submetido está intimamente relacionada à sua parte viva, ao seu componente biológico. Assim, ao longo de duas décadas de estudos, além dos aspectos relacionados à saúde do solo, verificou-se que a capacidade do solo de guardar informações sobre o tipo de manejo ao qual ele foi submetido podia ser acessada por meio da determinação das enzimas da BioAS, arilsulfatase e β-glicosidase .
A atividade enzimática representa o total de enzimas que estão ativas no solo, vindas de: i) Organismos vivos que estão atuando naquele momento (fungos, bactérias, raízes, minhocas), ii) Resquícios de organismos que já passaram pelo solo, cujas enzimas ficaram ali armazenadas . Parte dessas enzimas, pode continuar presente no solo mesmo após a morte desses organismos porque se ligam a partículas de argila e matéria orgânica, ficando protegidas por muito tempo. Por isso, o solo consegue guardar informações do seu histórico de uso, como se fosse um arquivo biológico e as enzimas podem ser utilizadas para acessar essa “memória do solo”.
AgriBrasilis – Qual o impacto da BioAS na produtividade da lavoura?
Ieda C. Mendes – Todo solo saudável é produtivo, mas nem todo solo produtivo é saudável. Nem sempre produtividade alta, pH corrigido ou níveis adequados de nutrientes significam que o solo está saudável. É preciso olhar além.
Resultados de vários trabalhos técnico-cientificos indicam que, em média, a produtividade da soja nas áreas com solos saudáveis ou em recuperação varia de 520 a 680 kg ha⁻¹ superior àquela obtida em áreas com solos adoecendo ou doentes, reforçando a relação entre saúde do solo e altos rendimentos em ambientes de produção de alta qualidade.
Mas novamente, é importante lembrar que saúde do solo vai muito além do que somente a produtividade das lavouras. Solos saudáveis são solos biologicamente ativos, capazes de armazenar água e com alto potencial de ciclagem de nutrientes, sequestro de carbono e biorremediação de pesticidas.
Assim como empresas investem na saúde dos seus trabalhadores para melhorar seu desempenho, investir na saúde do solo também traz retorno: mais produtividade, maior eficiência no uso de água e fertilizantes, solos mais resilientes e com melhor capacidade de degradar pesticidas. Ou seja, quem cuida do solo colhe resultados melhores, no bolso e no meio ambiente.
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