O Marco Temporal afronta os direitos indígenas?

“O Marco Temporal existe desde 2009, com o julgamento do caso Raposo Serra do Sol…”

Pedro Puttini Mendes é advogado e consultor jurídico na P&M Advocacia & Consultoria Ambiental, Agrária e Imobiliária, mestre e graduado em direito pela Universidade Católica Dom Bosco.

Mendes é professor de direito agrário e ambiental, membro-fundador da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

Pedro Puttini, advogado e consultor jurídico na P&M


AgriBrasilis – O Marco Temporal afronta os direitos indígenas?

Pedro Puttini – Não existe tal afronta. Um dos principais argumentos contra o Marco Temporal seria que haveria caos jurídico e conflitos em áreas já pacificadas, em razão de uma suposta revisão de áreas demarcadas. Esse argumento é inverídico, já que a Constituição de 1988 prevê que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

O Marco Temporal existe desde 2009, com o julgamento do caso Raposo Serra do Sol, vinculado a outros casos por meio da Portaria nº 303/2012, Portaria nº 415/2012 e Parecer nº 001/2017, da Advocacia Geral da União, responsável por cumprir decisões do STF no território nacional. Nunca houve afronta contra direitos desde então.

Outro argumento dos indigenistas aponta que o Marco Temporal significaria o fim das demarcações de terras, pois os indígenas terão que comprovar que ali estavam antes da promulgação da Constituição. Afirmam que isso descaracterizaria o artigo 231 da Constituição por estarem no país desde antes de 1500 e que isso seria uma exclusão do processo histórico do Brasil. Porém, não haverá o fim de demarcações. Haverá um critério objetivo para as demarcações. O critério atual é subjetivo, coordenado pela Funai e por antropólogos com interesse na instrução processual, violando preceitos processuais básicos, já que existe evidente conflito de interesses, até mesmo por dever legal.

Cabe aqui um questionamento aos que pretendem realizar reparação histórica em regiões onde o uso das terras se consolidou em áreas agropecuárias ou urbanizadas: essas áreas serão simplesmente demolidas, retiradas ou convertidas em um estado pré-colonização para “atividades produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar e necessárias à reprodução física e cultural, segundo usos, costumes e tradições” dos indígenas, conforme determina o artigo 231, §1º da Constituição?

É completamente incoerente, além de inconstitucional dentro do atual planejamento territorial brasileiro, alocar indígenas em áreas já ocupadas há muitos anos, com outros usos. O Brasil possui um planejamento territorial com alocações completamente aleatórias das terras atribuídas ao Governo, como unidades de conservação, assentamentos, áreas militares, terras indígenas e outras políticas públicas. Esse território deveria ser pensado para todos os brasileiros, para gerar emprego, renda e abastecimento alimentar.

A utilização de terras indígenas com finalidades diversas de seus “usos e costumes” (soja, pecuária etc.), para trazer desenvolvimento socioeconômico às comunidades indígenas, traz uma linha tênue entre a flexibilização do uso das terras indígenas e o esvaziamento do verdadeiro significado do art. 231, §1º da constituinte.

Já basta de polarização das discussões, como se existissem apenas “latifundiários”, ou agronegócio, versus indígenas. As demarcações pelo critério de ancestralidade têm sido seletivas, excluindo áreas urbanas ou de baixa capacidade produtiva do solo, exceto naqueles casos em que, para preservação de recursos naturais existentes, se faz necessário demarcar ou desapropriar. Existem outras modalidades de criação de terras indígenas permitidas pelo Estatuto do Índio, e essas terras estão longe da extinção. O que é necessário, na verdade, é planejamento.

AgriBrasilis – No que consiste o Marco Temporal sobre as demarcações de terras indígenas, PL 490/07?

Pedro Puttini – O “Marco Temporal” e o “PL490/2007” são questões distintas. O PL490/2007 engloba outros pontos, além do Marco Temporal em si, como a exploração de terras indígenas, e esses pontos poderiam ser discutidos em outro momento. É necessário priorizar a regulamentação do Marco Temporal para encerrar os conflitos que envolvem a demarcação de terras indígenas.

O Marco Temporal não é apenas uma tese jurídica, mas é a orientação do artigo 231, §1º da Constituição Federal, interpretada pelo STF. São demarcadas apenas as terras indígenas que esses povos ocupavam ou disputavam (renitente esbulho) até a promulgação da Constituição. Essa interpretação se deu em 2009, quando o STF julgou o caso Raposo Serra do Sol; basta ler o que consta no julgamento (acórdão) que define o marco temporal e indica as razões de sua existência.

Pela falta de legislação específica para definir “qual é” o “Marco Temporal” que define “as terras tradicionalmente ocupadas em caráter permanente”, o STF o fez durante o caso Raposo Serra do Sol.

Aliás, naquela ocasião, para justificar a desnecessidade de atribuir efeito vinculante a outros casos, o STF decidiu que aquela decisão teria “força intelectual e persuasiva da mais alta Corte do País”, deixando agora de demonstrar os motivos para superação ou sua distinção deste precedente para julgá-lo novamente.

AgriBrasilis – O texto do PL, em seu artigo 3º, descreve que existem três tipos de terras indígenas. Por que essas distinções são importantes?

Pedro Puttini – Essas distinções são importantes para esclarecer que o Marco Temporal de 05/10/1988 apenas se refere às terras mencionadas no artigo 231, §1º da Constituição Federal, ou seja, “as terras que tradicionalmente ocupam, […] por eles habitadas em caráter permanente”.

O Marco Temporal não é e não será o fim das terras indígenas, pois o Estatuto do Índio prevê a criação de terras indígenas em outras duas modalidades, ou seja as “áreas reservadas”, também conhecidas por “reservas indígenas”, ao exemplo do Xingu, criadas sob modalidade de reserva, parque ou colônia agrícola indígena; e ainda o reconhecimento de terras indígenas como “terras de domínio das comunidades indígenas”, aquelas de propriedade plena do índio ou da comunidade indígena, havidas por qualquer das formas de aquisição do domínio, nos termos da legislação civil, bem como por “usucapião indígena”, quando são ocupadas por dez anos consecutivos, no caso de área menor do que 50 hectares.

AgriBrasilis – Como o Marco Temporal se relaciona com a constituição de 1988? Esse projeto é compatível com o texto constitucional?

Pedro Puttini – O Marco Temporal é absolutamente compatível com o texto constitucional. Como mencionado, tem relação com a Constituição de 88 diante da necessidade de esclarecer a expressão “terras que tradicionalmente ocupam, […] por eles habitadas em caráter permanente”, o que não foi feito até o momento pela via legislativa, mas apenas pelo judiciário, que expressamente disse “[…]Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988”.

A “teoria do Indigenato”, sustentada pelos indigenistas, está às margens da Constituição Federal e em contradição com o caso Raposo Serra do Sol. Essa teoria afirma que o direito dos povos indígenas sobre terras tradicionalmente ocupadas seria inato, congênito, anterior à própria criação do Estado brasileiro, que não necessitaria de previsão legal pela impossibilidade de limitação de um direito ancestral. Segundo o Indigenato, o poder público federal deveria demarcar e proteger todas as terras em que indígenas estiveram presentes em um passado remoto e distante. Parece coerente?

Essa teoria antropológica com viés supostamente jurídico é proibida pela legislação, caracterizando o que chamamos de repristinação, ou seja, o restabelecimento da vigência de uma lei revogada pela revogação da lei que a havia revogado. Nesse caso, trata-se de uma lei ou um direito que nunca existiu. Ressuscitar direitos, como pretende o Indigenato, não é possível. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro determina que uma norma só volta a valer se explícita, expressada em outra norma. Não existe repristinação automática, muito menos criada por tribunais.

AgriBrasilis – Quais os prós e contras desse projeto de lei e as possíveis consequências de sua aprovação?

Pedro Puttini – A análise que se faz dessa situação restringe-se apenas ao “Marco Temporal” e não ao “PL490/2007” como um todo, pois o PL490 engloba situações que vão além do Marco Temporal.

Há uma grande necessidade de aprovação do Marco Temporal, que seria benéfico ao planejamento territorial, à segurança jurídica e ao fim dos conflitos fundiários que aumentaram no país em 2023.

AgriBrasilis – Em qual estágio o projeto se encontra e que etapas são necessárias para sua aprovação? O senhor considera que o projeto será aprovado?

Pedro Puttini – O Projeto de Lei agora deixou de se chamar PL490/2007, tendo sido remetido ao Senado, ganhando nova numeração, tramitando como PL2903/2023 que, hoje (21/06), está na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado Federal, desde 02/06/2023, sob relatoria da Senadora Soraya Thronicke.

 

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