“…estamos vivendo uma tempestade perfeita: desaceleração econômica, pandemia, mudança climática, inflação e agora a guerra entre a Ucrânia e a Rússia…”
Rafael Zavala é representante da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura – FAO no Brasil desde 2018. Zootecnista, mestre em agricultura sustentável e Ph.D em políticas para o desenvolvimento rural, ele participou do Congresso Legislativo do México e foi consultor para o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura.
Zavala também foi representante da FAO na Colômbia, focado na implementação de estratégias para consolidação da paz e estabilização em áreas rurais.

Rafael Zavala, representante da FAO no Brasil
AgriBrasilis – Qual o significado de segurança e soberania alimentar? Qual é a relação desses com a fome?
Rafael Zavala – São dois conceitos complexos, intimamente ligados à fome. Podemos dizer que segurança alimentar é um conceito mais concreto e uniforme, mais mensurável como processo na perspectiva do sistema agroalimentar, enquanto que soberania alimentar é um conceito mais holístico, abstrato, e sua interpretação varia entre as regiões ou países, especialmente na América Latina.
A segurança alimentar busca garantir disponibilidade e acesso aos alimentos, a estabilidade do acesso ao longo do tempo e a qualidade nutricional para a população.
Com relação à soberania alimentar, entende-se que alimentos precisam ser produzidos de forma sustentável, em harmonia com os ecossistemas, em que o controle do sistema alimentar precisa permanecer nas mãos daqueles que dependem da agricultura.
Produzindo de forma sustentável, com a valorização dos pequenos produtores e incentivo a circuitos curtos, com baixa pega hídrica e de carbono, conseguimos mitigar a pobreza rural e diminuir o custo de alimentos saudáveis. Isso tem impacto significativo na redução da fome.
A controvérsia entre segurança alimentar e soberania alimentar foi discussão acalorada na época da abertura comercial, nas décadas de 1980 e 1990. Agora, com as mudanças climáticas e demandas por sistemas alimentares mais sustentáveis, e a necessidade de reduzir a dependência de sistemas alimentares e insumos estratégicos do exterior (que melhor exemplo do que a atual crise de fertilizantes devido à guerra da Rússia contra a Ucrânia?), nos vemos diante de uma realidade em que segurança e soberania alimentar se aproximaram mais do que poderíamos imaginar.
AgriBrasilis – O Brasil chegou a ser retirado do Mapa da Fome em 2013. Qual tem sido a evolução desse cenário, desde então?
Rafael Zavala – O Mapa da Fome da ONU que existia em 2013 não existe mais em 2022, porque em 2015 os países pactuaram novas metas. Com a entrada dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), foi preciso mudar a forma de comunicar os dados. Ainda publicamos a prevalência de subalimentação, mas o Mapa da Fome deixou de ser referência, já que agora a meta do ODS 2 é a erradicação da fome.
A FAO tem observado com preocupação o momento de insegurança alimentar atual. A pandemia de COVID-19 e a guerra na Ucrânia impactaram a economia mundial, afetando o estado nutricional de milhões de pessoas. Os últimos dados da FAO de 2021 mostram que só na América Latina e no Caribe havia cerca de 60 milhões de pessoas com fome. É claro que neste ano os dados serão ainda mais devastadores. Como diz o representante regional da FAO, Julio Berdegué, estamos vivendo uma tempestade perfeita: desaceleração econômica, pandemia, mudança climática, inflação e agora a guerra entre Ucrânia e Rússia.
Será difícil alcançar os Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, mas acreditamos que o Brasil tem as ferramentas e conhecimentos necessários para caminhar rumo à erradicação da fome.
AgriBrasilis – Alguns países da América Latina são grandes produtores de grãos, cereais e proteína animal, mas suas populações não têm acesso a alimentação básica. Como o senhor vê esse contraste?
Rafael Zavala – Somos 650 milhões de pessoas na América Latina e Caribe, produzindo o suficiente para 1,3 bilhões de pessoas. Isso representa um em cada seis habitantes do planeta, mas ainda vemos um cenário onde pessoas vivem com fome. O problema não é a falta de alimentos, mas a falta de dinheiro para garantir acesso ao alimento. A falta de renda também faz com que as pessoas abandonem alimentos mais nutritivos, aumentando o sobrepeso e a obesidade.
O apelo da FAO é o de que governos mantenham e ampliem programas de proteção social que já existiam ou que foram implementados durante a pandemia. Não é possível retirar auxílios até que as pessoas recuperem pelo menos os níveis de renda que tinham antes.

Fonte: Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
AgriBrasilis – Quais os trabalhos desenvolvidos pela FAO no combate à fome na América Latina e quais as dificuldades para implementá-los?
Rafael Zavala – A FAO atua em diversas frentes, principalmente no apoio aos países da região no desenvolvimento e implementação de estratégias, leis e programas para erradicar a fome, promovendo a agricultura familiar, desenvolvimento agrícola e rural e a adaptação às mudanças climáticas. Trabalhamos com os governos, sociedade civil e cooperação internacional, capacitando atores e comunidades locais para serem protagonistas de seu desenvolvimento.
As dificuldades são impostas pelo contexto que vivemos, mas neste ano os Estados Membros da FAO na América Latina e no Caribe estabeleceram três iniciativas regionais na 37ª Conferência Regional da FAO, que são: sistemas alimentares sustentáveis para fornecer alimentações saudáveis para todas as pessoas; sociedades rurais prósperas e inclusivas; e agricultura sustentável e resiliente. Esperamos que com estes compromissos os países consigam avançar para um cenário positivo de recuperação econômica e erradicação da fome.
AgriBrasilis – Quais os prováveis cenários em relação à segurança alimentar da América Latina no pós-pandemia?
Rafael Zavala – Sentiremos por muito tempo o impacto da pandemia, pois aumentou a vulnerabilidade dos trabalhos, principalmente os informais, e aumentou os preços dos alimentos.
Dados da VigiSAN (Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil) mostram que a perda de emprego e o endividamento da família são as condições que mais impactaram a segurança alimentar. Além disso, estamos enfrentando os impactos da guerra na Ucrânia.
Estamos em um momento de muita incerteza, pois o futuro depende de como a guerra continuará, se os grandes portos do Mar Negro serão afetados e outras variáveis.
AgriBrasilis – Qual é a importância de políticas que fomentem segurança e soberania alimentar? Como garantir que essas políticas obtenham sucesso?
Rafael Zavala – Reconstruir economias e buscar a recuperação dos empregos e da renda das pessoas é uma questão prioritária para a segurança alimentar. Também enfrentamos outros desafios, como a necessidade de garantir alimentos suficientes para a população mundial em crescimento, proteger a subsistência e o bem-estar dos agricultores e preservar o potencial de desenvolvimento para as gerações futuras.
É imprescindível priorizar políticas do tipo “ganha-ganha”, que permitam avançar simultaneamente com as agendas socioeconômica, ambiental e climática em direção ao desenvolvimento sustentável. Iniciativas com objetivo de reduzir o impacto negativo da agricultura nos recursos naturais e nas mudanças climáticas incorrem em melhorias na eficiência produtiva e no desenvolvimento de novas fontes de receitas. Através da certificação da produção, por exemplo, consegue-se acesso a mercados mais exigentes.
No aspecto social, vemos impacto positivo em projetos de desenvolvimento de conhecimentos e habilidades organizacionais, empreendedorismo, geração de empregos e oportunidades especificas para mulheres vinculadas a projetos de agricultura familiar, por exemplo.
Em termos ambientais, podemos destacar projetos associados a uma maior oferta de serviços ecossistêmicos, com maior oferta de água, controle da erosão, saúde ambiental, etc.
AgriBrasilis – De que forma os diversos setores da sociedade e governos poderiam contribuir para a segurança e soberania alimentar da população?
Rafael Zavala – Todos os setores têm papel a desempenhar para garantir a segurança alimentar da população e a transformação dos sistemas agroalimentares para que sejam mais inclusivos, resilientes e sustentáveis.
Governos, empresas, sociedade civil, setor privado, entre outros atores, devem usar este momento de recuperação como oportunidade para adotar caminhos que irão reduzir emissões de carbono, conservar recursos naturais, criar empregos, promover igualdade de gênero e combater desigualdades.
Um exemplo do combate à fome no Brasil: o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), por seu alcance às famílias mais vulneráveis e sua estratégia de compras públicas para a inclusão da agricultura familiar, bem como a geração de empregos a partir do preparo e cozimento dos alimentos, de acordo com os guias alimentares e a cultura regional.
Outro exemplo são os restaurantes comunitários que vemos em algumas cidades como Brasília e Belo Horizonte, que oferecem uma refeição completa por menos de meio dólar. Esses são dois grandes exemplos de combate à fome, um como política de Estado, em escala nacional, e outro de governos locais comprometidos.

Fonte: Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
