Concessão de crédito mal planejada e aumento das Recuperações Judiciais no agro

Published on: February 5, 2025

“…verificamos diversos produtores e distribuidores de insumos alavancados financeiramente, mas que continuaram a ser financiados por bancos…”

Adauto Kaneyuki é sócio proprietário da J. Ercílio de Oliveira Advogados, escritório especializado em agronegócio, formado em direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.

Kaneyuki possui especialidade em operações de barter, contencioso cível, como advogado de credores em Recuperações Judiciais propostas, etc.

Adauto Kaneyuki, sócio proprietário da J. Ercílio de Oliveira Advogados


AgriBrasilis – Qual o principal motivo do aumento dos casos de Recuperação Judicial (RJ)? 

Adauto Kaneyuki – A RJ é o remédio judicial específico para tentar solucionar uma grave crise econômico-financeira de determinada empresa ou de determinado agricultor.

O aumento de casos de RJ é resultado da somatória de dois grandes fatores: um alto endividamento do setor agrícola, especialmente dos produtores de grãos e a baixa lucratividade nas duas últimas safras.

É importante lembrar que já tivemos momentos de crise de liquidez no setor agrícola em outras ocasiões, mas estamos diante da primeira grande crise de liquidez após a inclusão dos § 2º e 3º do artigo 48 da Lei de Recuperação Judicial que, desde janeiro de 2021, admitiu a possibilidade de o agricultor ingressar com pedido de Recuperação Judicial.

AgriBrasilis – Por que o senhor considera que os planos de recuperação no agro têm sido “totalmente fora do razoável”?

Adauto Kaneyuki – Em geral, o plano de Recuperação Judicial é preparado por uma empresa financeira contratada pelo Recuperando que, após análise detalhada de produtividade anual e despesas de produção, elabora um fluxo de pagamento aos Credores concursais. A análise de fluxo de caixa também deve levar em consideração outros débitos que o Recuperando possui com Credores extraconcursais, sendo que, ao final, o plano previsto busca cumprir todas as obrigações e ainda gerar lucro ao Recuperando. Caso contrário, o remédio judicial a ser adotado seria o de autofalência.

Partindo dessa premissa, podemos dizer que, na maioria dos casos, a apresentação de planos de RJ “fora do razoável” no mercado agro é resultado de concessão de crédito mal planejada pelos Credores, ou seja, possui ligação direta de desequilíbrio entre o volume de crédito concedido e a capacidade de lucratividade. Sem contar a avaliação inadequada dos bens disponíveis passíveis de penhora, tanto por parte do agricultor, quanto do distribuidor do insumo agrícola. Temos visto, por exemplo, pedidos de RJ de arrendatários que, ao final, não têm como apresentar um plano minimamente razoável, dada a sua baixa lucratividade por safra.

Existem casos, porém, em que o Recuperando teria capacidade de apresentar um plano de RJ mais próximo do razoável aos interesses dos Credores. Encaixam-se nesses casos alguns produtores que possuem patrimônio bem superior ao valor da dívida, sendo que o resultado da venda de uma de suas fazendas já seria suficiente para pagar Credores concursais e extraconcursais, sem afetar a viabilidade de sua atividade. No entanto, mesmo com capacidade de gerar recursos para propor um plano de pagamento aos Credores, tais Devedores apresentam planos de RJ alongados e com hair cut [descontos da dívida] extremamente elevado.

Para esses casos em que o Recuperando é proprietário de bens passíveis de liquidação, mas nada faz além de propor um plano baseado apenas na sua liquidez financeira atual, entendo que falta por parte dos Credores concursais maior combatividade e criatividade no decorrer do processo. Apesar da existência de previsão legal para criação de comitê de Credores para se unirem e forçarem o Recuperando a apresentarem planos mais vantajosos aos interesses dos Credores, isso não tem ocorrido na prática. A falta de pressão dos Credores é um dos motivos que justificam a apresentação de planos abaixo das expectativas de mercado.

O plano de Recuperação Judicial é apresentado pelo Recuperando dentro do processo e quem decide pela aprovação ou reprovação do plano são os Credores. Recuperandos e Credores, possuem, em proporções distintas, a sua parcela de “culpa” no cenário atual de planos aprovados com carência de pagamento, altos deságios e, muitas vezes, mais de uma década para efetuar os pagamentos.

AgriBrasilis – O que os Credores devem observar na concessão de crédito?

Adauto Kaneyuki – Conceder crédito no agro é uma medida estratégica: de um lado, temos um setor com um mar de oportunidades com expansão anual, causado pela dependência mundial de nossos alimentos, enquanto de outro lado existem vários fatores de riscos envolvidos. Por isso, é evidente que a análise financeira do favorecido do crédito ainda é o principal pilar de investigação por parte do operador de crédito no agro.

Nas últimas safras verificamos diversos produtores e distribuidores de insumos alavancados financeiramente, mas que continuaram a ser financiados por bancos, empresas fabricantes e distribuidores de insumos agrícolas.

Devem ser levadas em consideração pelo operador de crédito as particularidades da estrutura operacional do seu cliente. É interessante e de grande importância observar, antes de conceder o crédito, como o cliente – agricultor – costuma travar o preço da commodity agrícola, se ele utiliza seguro contra quebra de safra ou se possui estrutura capacitada para a condução da lavoura. Da mesma forma, é necessário analisar com mais profundidade a gestão financeira e de crédito de uma empresa distribuidora de insumos.

A exigência de garantias adequadas para tornar seu crédito extraconcursal em caso de pedido de RJ é um ponto fundamental, não ficando, assim, o Credor sujeito aos efeitos destes planos “diabólicos” atualmente apresentados pelos produtores e que acabam sendo aprovados pela maioria dos Credores concursais.

AgriBrasilis – Quais os passos e quanto tempo demora um processo de RJ?

Adauto Kaneyuki – Em tese, o procedimento de RJ é bastante simples.

Inicialmente o Recuperando, desde que tenha mais de dois anos de atividade, deve convencer o juiz que está em crise econômico-financeira e que possui plenas condições de permanecer em sua atividade, condicionada a aprovação de um plano que será apresentado ao longo do processo. Basicamente, é em cima dessa análise e com a comprovação por meio de certidões (débitos fiscais) e documentos (balanço, livro caixa, tempo de atividade) que o juiz defere ou não o pedido de RJ.

Uma vez deferido o processamento da RJ, ocorre a suspensão de apontamentos e execuções de créditos concursais em face do Recuperando, conhecido como período de blindagem ou “stay period”, quando os bens de capital que forem considerados essenciais pelo juiz para a manutenção da atividade do Recuperando não poderão ser retirados de seu domínio, mesmo que o pedido de constrição parta de um Credor com crédito extraconcursal. A lei prevê que esse período de blindagem tem a duração de 180 dias, podendo, com fundadas razões e provas, ser prorrogado por mais 180. Entretanto, a jurisprudência majoritária tem admitido a extensão até a ocorrência da assembleia geral de Credores.

Depois de ajustada a lista de Credores concursais pelo administrador judicial e pelo juiz, cabe ao Recuperando apresentar um plano de pagamento que, em regra, será votado em assembleia geral de Credores. No momento da votação do plano, há uma divisão de quatro classes entre os Credores, que se enquadram de acordo com a característica de crédito: I – Trabalhista, II – Garantia real, III – Quirografário e IV – Micro e Pequena Empresa. A classe III – Quirografária é tida como “classe residual de Credores”, uma vez que aqui estão incluídos os Credores que não se encaixam nas outras classes.

Para que o processo de RJ seja aprovado, deve ter maioria de voto a favor do plano por cabeça na classe trabalhista e de micro e pequenas empresas. Já na classe de Credores reais e quirografários, deve existir a maioria de votos por cabeça e por crédito em cada classe. Se em todas as classes ocorrer a aprovação dentro dos critérios citados, haverá a aprovação do plano. Ao contrário, pode ocorrer a decretação da falência por rejeição do plano.

Depois da votação, o processo é encaminhado ao juiz que, por fim, verifica se houve qualquer irregularidade durante a assembleia e se não há qualquer abusividade ou ilegalidade no plano de RJ aprovado em assembleia. Feita a análise, o plano será homologado, cabendo ao Recuperando cumprir com o que foi proposto em plano aos Credores concursais.

Vale dizer que o legislador, ao criar o processo de RJ, determinou que o prazo para conclusão do processo seria de, no máximo, 6 meses. Contudo, na prática, isso não tem ocorrido. Em média, um processo de RJ, sem levar em consideração o cumprimento do plano de RJ – entre o pedido de RJ e a homologação do plano – dura entre 18 e 24 meses. A velocidade do processo depende de uma série de fatores, como a vara que recepcionou o processo, a destreza do administrador judicial indicado pelo juiz na condução do processo, o número de Credores concursais e a quantidade de recursos no decorrer do processo.

AgriBrasilis – De forma geral, quais as alternativas oferecidas aos Credores durante o processo de RJ?

Adauto Kaneyuki – É raro quando o Recuperando apresenta um plano de RJ que contemple a venda parcial de seus ativos para cumprir as obrigações com os Credores concursais. De forma geral, os planos apresentados pedem um prazo extenso com um deságio considerável e uma carência de aproximadamente dois anos.

Todavia, em quase todos os planos, é criada a figura do Credor parceiro/fomentador/financiador, que recebe um tratamento diferenciado. Essa subclasse normalmente recebe todo o valor do crédito num prazo muito menor que os demais Credores concursais, isto porque ocorre por parte desse Credor a concessão de novos créditos (financiamento ou fornecimento) ao Recuperando.

A lei de RJ prevê a aplicação do princípio da isonomia entre os Credores, de modo que todos da mesma classe devem ser tratados de forma igual. Contudo, a previsão de cláusula de Credor parceiro quebra essa regra geral e é aceita pela lei, pois privilegia a forma de recebimento daquele Credor que continuou acreditando na empresa, pois ao conceder novos créditos dá o folego financeiro que a empresa em RJ normalmente necessita.  É uma espécie de premiação legal para aquele Credor que continuou acreditando na viabilidade econômica da empresa.

AgriBrasilis – Qual é a diferença entre Credores concursais e extraconcursais?

Adauto Kaneyuki – O Credor concursal está sujeito aos efeitos e condições do plano apresentado pelo Recuperando e aprovado pela maioria dos Credores. Mesmo que o Credor concursal venha a votar contra o plano apresentado, caso o plano seja aprovado pela maioria, ele estará restrito às condições previstas no plano, não podendo executar a dívida em ação singular e paralela.

O Credor extraconcursal goza do benefício de poder cobrar judicialmente o Recuperando, por meio de execução ou outras medidas, em paralelo ao processo de RJ. Possuem essas características, por exemplo, todas as vendas realizadas após o pedido de RJ, créditos garantidos por alienação fiduciária de bem móvel ou imóvel e, especificamente no agro, os créditos lastreados em CPRs (independentemente da espécie da garantia) utilizados em operação de barter ou antecipação de compra de produtos rurais.

AgriBrasilis – A RJ está se tornando um negócio?

Adauto Kaneyuki – O instituto da RJ é um remédio judicial importante e necessário para preservar a manutenção da empresa e dos agricultores. Se a RJ tem previsão legal, não há qualquer irregularidade por parte de quem pede e muito menos por parte dos advogados dos Devedores que oferecem seus serviços para preservar direitos dos seus clientes.

Mesmo assim, é necessário separar os Devedores que realmente dependem deste instituto para sobreviver daqueles Devedores que estão tentando usufruir dos benefícios apenas para tentar levar vantagem financeira. Para esse segundo perfil, caberia ao Poder Judiciário uma intervenção maior para analisar se realmente existe crise econômico-financeira merecedora de proteção judicial. É possível coibir essa prática, desde que o juiz condutor da RJ solicite perícia prévia judicial mais profunda. Na prática isso não acontece, até porque o entendimento jurisprudencial atual é contrário a intervenção do juiz nas questões econômicas do Recuperando. Ao meu ver, aqui está um equívoco interpretativo por parte do Poder Judiciário, uma vez que a legislação aponta que interesses dos Credores também devem ser preservados, não devendo apenas se buscar a manutenção da atividade do Recuperando a qualquer custo.

Conforme os pedidos de RJ são deferidos pelos juízes sem qualquer restrição e conforme a grande maioria dos planos são aprovados com deságios de 70% ou 80%, com quase 20 anos para pagar, naturalmente começa a existir um interesse crescente pelo agricultor ou empresário endividado. Mais do que isso, os produtores que estão pedindo RJ muitas vezes continuam gozando de crédito no mercado!

Aqui cabe uma reflexão por parte dos próprios fornecedores de créditos e insumos agrícolas que, de certa forma, estão ajudando a fomentar e estimular a proliferação dos pedidos de RJ. Afinal, são eles que votam, na maioria das vezes, a favor do plano e são eles que continuam concedendo crédito ao produtor.

Diante desse cenário de crise de liquidez no agro e diante da facilidade com que os Devedores conseguem se proteger por meio da RJ, cabe ao Credor fazer uma gestão de crédito mais estratégica e mais conservadora para que não sofra maiores prejuízos no futuro.

 

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