“A reavaliação toxicológica não é um processo exclusivo do Brasil. Os países e blocos de referência internacional no tema também adotam procedimentos semelhantes…”
Maria Augusta Carvalho Rodrigues é a coordenadora de reavaliação de agrotóxicos da Gerência-Geral de Toxicologia da Anvisa.
Rodrigues é formada em bioquímica pela Universidade Federal de Alfenas, mestre e doutora em toxicologia pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP de Ribeirão Preto.
AgriBrasilis – Por que a reavaliação toxicológica pode resultar na proibição de um produto?
Maria Carvalho – Diferentemente de outros produtos regulados pela Anvisa, o registro de agrotóxicos não possui previsão legal para renovação ou revalidação. Uma vez concedido, o registro de agrotóxicos possui validade indeterminada.
Dessa forma, o Decreto nº 4.074, de 2002, previu que os Ministérios da Agricultura, da Saúde e do Meio Ambiente, no âmbito de suas respectivas áreas de competência, devem promover a reavaliação do registro de agrotóxicos quando houver alerta para riscos, contraindicação do uso de determinados agrotóxicos por outras autoridades ou surgimento de indícios de riscos que desaconselhem o uso dos produtos registrados.
Esses indícios podem enquadrar o agrotóxico em um dos itens proibitivos de registro, elencados no Art. 31 do referido Decreto: serem teratogênicos, carcinogênicos, mutagênicos, causadores de distúrbios hormonais, mais perigosos para o homem que o demonstrado em ensaios em animais, além de serem identificadas ausência de métodos de desativação e ausência de antídoto.
Quando novas evidências indicarem o enquadramento em um critério que não permitiria o registro, sem a possível determinação de um limiar seguro, a conclusão da reavaliação é pela proibição do ingrediente ativo.
AgriBrasilis – Todas as moléculas registradas no país são passíveis desse processo? A aprovação do registro já não garante a sua segurança?
Maria Carvalho – Todos os ingredientes ativos de agrotóxicos registrados são passíveis de reavaliação. Ainda que a segurança tenha sido avaliada no ato do registro, o conhecimento técnico-científico sobre esses produtos está em permanente evolução e novos aspectos e riscos podem ser identificados.
A reavaliação toxicológica não é um processo exclusivo do Brasil. Os países e blocos de referência internacional no tema também adotam procedimentos semelhantes, visando proteger a população.
Considerando o avanço do conhecimento científico, não se pode negligenciar novas evidências de risco à saúde, que não foram detectadas no momento do registro do agrotóxico.
AgriBrasilis – O que é considerada evidência suficiente para iniciar um processo de reavaliação? O que faz a Anvisa priorizar a reavaliação de certas moléculas?
Maria Carvalho – O processo de reavaliação inicia-se com a indicação de um ingrediente ativo. A indicação pode ocorrer quando houver alertas de organizações internacionais; por iniciativa da própria Anvisa, quando forem detectados indícios de alteração nos riscos à saúde humana ou; ainda, por pessoa ou instituição, desde que formalizada por meio do formulário disponível na página da reavaliação.
A indicação deve ser acompanhada de evidências técnico-científicas que indiquem o possível enquadramento do ingrediente ativo nos critérios proibitivos de registro ou em outros com potencial risco à saúde humana.
Entre as indicações submetidas, a Anvisa enquadra e seleciona os ingredientes ativos que serão submetidos à reavaliação com base no risco à saúde humana, considerando: evidências de enquadramento do agrotóxico nos critérios proibitivos de registro; evidências de riscos à saúde, com extrapolação de parâmetros de referência dietéticos e ocupacionais; relevância da exposição ao agrotóxico para humanos, avaliada por meio de dados de comercialização, de intoxicações humanas, de monitoramento de resíduos do agrotóxico em água, alimentos e em amostras biológicas; etc.
O critério de seleção que resultou na última lista publicada de agrotóxicos destinados à reavaliação, de 2019, utilizou uma matriz de risco que pontuou várias evidências de risco à saúde e exposição, por exemplo: risco dietético, dados de comercialização e cenários de exposição do operador, etc. A lista e a pontuação alcançadas estão disponíveis no portal eletrônico da reavaliação, e podem ser acessados na seguinte página.
AgriBrasilis – Caso a molécula reavaliada não seja proibida, ela pode sofrer que tipos de restrições?
Maria Carvalho – O processo de reavaliação não é automaticamente vinculado à proibição ou à restrição de uso de determinado ingrediente ativo de agrotóxico. A reavaliação analisa as evidências dos riscos à saúde e pode concluir pela manutenção do ingrediente ativo e seus produtos, com ou sem alterações de registro, ou pela manutenção com adoção de medidas de mitigação de risco à saúde, proibição ou suspensão de uso.
AgriBrasilis – Qual é o histórico da reavaliação toxicológica no Brasil?
Maria Carvalho – A Anvisa realiza reavaliações toxicológicas desde a sua criação. Até 2006, quando se optava pela reavaliação de determinado agrotóxico por decisão da Diretoria Colegiada, realizava-se uma reunião com representantes da Anvisa, do MAPA, do Ibama e do sindicato representante dos produtores de agrotóxicos para discussão e conclusões imediatas sobre o processo de reavaliação.
Após 2006, observa-se a publicação de notas técnicas com uma breve introdução, sumário dos dados toxicológicos, discussão, encaminhamentos e referências.
Em 2008, foi publicada a RDC n° 10, que definiu a reavaliação dos seguintes agrotóxicos: Abamectina, Acefato, Carbofurano, Cihexatina, Endossulfam, Forato, Fosmete, Glifosato, Lactofem, Metamidofós, Paraquate, Parationa Metílica, Tiram e Triclorfom. Na época dessa publicação, ainda não havia definição de procedimentos sobre a condução de um processo de reavaliação. Isso resultou na publicação posterior da RDC nº 48, que dispôs sobre procedimentos administrativos para a reavaliação toxicológica de produtos técnicos e formulados, com base em ingredientes ativos que gerassem preocupação para a saúde, e alterou dispositivos da RDC nº 10, de 2008.
Em 2016, a Anvisa reestruturou a área de toxicologia, buscando fortalecer suas ações. Foi possível rever o processo de reavaliação de agrotóxicos e dedicar uma equipe específica para essa atividade na Gerência-Geral de Toxicologia, resultando na criação da Coordenação de Reavaliação (CREAV), que foi estruturada para fortalecer as atividades relativas ao pós-mercado de agrotóxicos e para reorganizar e otimizar os processos de trabalho, incluindo as reavaliações de agrotóxicos.
Desde a criação da CREAV, foram realizado aperfeiçoamentos nos processos de trabalho e padronização de análises, como a elaboração de pareceres parciais para cada análise realizada ou cada aspecto toxicológico de uma reavaliação, permitindo detalhamento sobre as etapas superadas e sobre aquelas ainda pendentes durante o processo de reavaliação.
Partindo da experiência adquirida pela Anvisa no processo de reavaliação de agrotóxicos, foi elaborada uma proposta de atuação regulatória que resultou na publicação da RDC n° 221, de 2018. O regulamento dispõe sobre os critérios e os procedimentos para o processo de reavaliação toxicológica de agrotóxicos no âmbito da Anvisa e revogou a RDC n° 48, de 2008, conferindo maior objetividade, clareza, transparência e efetividade aos procedimentos de reavaliação, de forma que eles correspondam às reais necessidades e finalidade da atividade.
O diferencial da RDC n° 221 é justamente a inclusão das etapas iniciais do processo, a saber: indicação, seleção e definição do escopo da reavaliação. A norma estabelece que a Anvisa avaliará as evidências de riscos à saúde dos ingredientes ativos permitidos no Brasil, e estabelecerá quais devem ser reavaliados primeiramente, com base no risco que os agrotóxicos efetivamente representam à saúde. Isso é importante, visto que sempre vão existir indicativos de riscos à saúde para diversos agrotóxicos, mas as instituições públicas precisam racionalizar a utilização de seus recursos.
Dessa forma, desde 2006, quando os procedimentos de reavaliação foram aperfeiçoados, a Anvisa finalizou a reavaliação de 20 ingredientes ativos. Treze deles foram proibidos, seis mantidos com restrições no registro, e um mantido sem alterações no registro.
AgriBrasilis – Como é realizada a análise de impacto econômico no caso de uma proibição, como ocorreu recentemente com o carbendazim?
Maria Carvalho – Uma vez concluída a reavaliação, caso seja necessária a implementação de medidas como a proibição ou a manutenção do registro com restrições, a Anvisa deve realizar reuniões com o MAPA e com o Ibama antes de sua decisão final, para discutir medidas restritivas eventualmente aplicáveis e os prazos de adequação, no âmbito das respectivas áreas de competência.
Prazos de descontinuação e medidas de mitigação variam de acordo com o ingrediente ativo, e consideram: impacto ambiental, em que o Ibama delibera entre incineração ou esgotamento dos estoques; impacto agronômico, em que MAPA e Embrapa avaliam alternativas disponíveis; impacto na produção de alimentos, em que o MAPA considera a possibilidade de desabastecimento.
No caso do carbendazim, os prazos de descontinuação foram graduais, proibindo inicialmente a importação pelas indústrias fabricantes de agrotóxicos, concedendo três meses até a proibição da produção, seis meses para a proibição da comercialização, e 12 meses para a proibição de exportação, permitindo-se o esgotamento dos produtos adquiridos pelos usuários finais. Dessa forma, espera-se que as medidas e os prazos de mitigação e descontinuação estejam em equilíbrio com os impactos econômicos da proibição.
AgriBrasilis – É garantido tempo suficiente para que as empresas possam se preparar para a retirada do produto?
Maria Carvalho – A Anvisa prioriza a transparência e o diálogo. Nesse sentido, existem esforços para permitir a previsibilidade dos ingredientes ativos que serão reavaliados.
A Anvisa realiza as etapas de seleção e priorização de ingredientes ativos por meio da avaliação preliminar das indicações para a reavaliação quanto à sua pertinência e possibilidade de admissibilidade. O resultado desse procedimento é a divulgação de uma lista de substâncias selecionadas no Portal da Anvisa, para divulgar os ingredientes ativos selecionados e a ordem em que serão reavaliados.
A divulgação da lista com antecedência à abertura do processo de reavaliação é necessária para garantir transparência e previsibilidade à sociedade, ao setor produtivo de agrotóxicos e aos usuários desses produtos. Assim, os usuários e o setor produtivo terão previsibilidade adequada para levantar dados e estudos referentes à substância a ser reavaliada e também para iniciar a busca de alternativas aos ingredientes ativos que poderão sofrer restrições ou proibição após a reavaliação.
Após a divulgação da lista de seleção dos ingredientes ativos, o início da reavaliação ocorre com a publicação do edital de chamamento, convocando empresas com produtos registrados para a discussão dos documentos a serem protocolados no prazo de 180 dias. Após esse período, é realizada a análise técnica e elaborada a Nota Técnica preliminar, que, por sua vez, recebe contribuições por meio de Consulta Pública. Apenas após a avaliação das contribuições e diligências necessárias com outras entidades é publicada a decisão final, que ainda conta com prazos de descontinuação.
A reavaliação é um processo extenso, transparente, e conta com a participação social, o que permite a preparação para uma possível retirada de produtos ou programação de substitutos.
A última lista com os ingredientes ativos selecionados para a reavaliação foi divulgada em 2019. Desde então, um ingrediente ativo teve sua reavaliação finalizada (carbendazim), quatro encontram-se em análise técnica (procimidona, clorpirifós, epoxiconazol e tiofanato-metílico) e dois (linurom e clortalonil) ainda aguardam a publicação de edital para início da reavaliação.
A reavaliação dos ingredientes ativos em análise técnica (procimidona, clorpirifós, epoxiconazol e tiofanato-metílico) está em fase de avaliação da documentação – protocolada pelas empresas – e de elaboração de pareceres que subsidiarão a elaboração da Nota Técnica Preliminar.
AgriBrasilis – Banir moléculas do mercado pode aumentar o comércio ilegal ou propiciar a adoção de piores práticas no campo?
Maria Carvalho – As proibições de ingredientes ativos de agrotóxicos por meio das reavaliações de segurança toxicológica objetivam a proteção da saúde da população brasileira. Seu processo é complexo, extensivo, transparente e amplamente discutido. Dessa forma, espera-se que haja o entendimento que o uso ilegal desses compostos resulta em risco à saúde humana e que alternativas sejam oferecidas aos produtores a fim de se evitar práticas danosas.
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