“Cerrado: Um importante celeiro do mundo”

Courtesy of Louis Phillip Guimarães
Publicado em: 14 de janeiro de 2021

José Quaggio e Heitor Cantarella, pesquisadores do IAC, revelam como métodos de análise de solos permitiram o sucesso da agricultura no bioma

A região central do Brasil, caracterizada pelo bioma Cerrado, possui 2 milhões de quilômetros quadrados, representando 23% do território nacional. Nos dias atuais, atentando aos resultados da safra recorde de 250 milhões de toneladas de grãos no Brasil, a história da agricultura se mescla com a história do Cerrado.

Até os anos de 1960, o Brasil era importador de alimentos, quando, a partir dos anos 70, o governo federal instituiu uma série de medidas para incentivar a pesquisa e o desenvolvimento da agricultura na região para alavancar a economia agrícola.

Surgiram os primeiros plantios e a produção de grãos do bioma aumentou de 8 milhões de toneladas para 70,3 milhões em 24,1 milhões de hectares. A partir daí, o Brasil passou a ganhar destaque internacional.

Hoje, metade da colheita de grãos são oriundos desta região, e o Cerrado sustenta em torno de 15% de toda a soja produzida no globo, com duas safras anuais. O agronegócio exporta 350 produtos para 180 países, de maneira que de cada quatro produtos no mundo, um é brasileiro¹.

José Antonio Quaggio e Heitor Cantarella, viveram e contribuíram cientificamente para o desenvolvimento agrícola do Cerrado. Quaggio é engenheiro agrônomo, com mestrado e doutorado em solos e nutrição de plantas pela Universidade de São Paulo. Ele é um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento do Sistema IAC de análise de solo e também desenvolveu o método saturação por bases para recomendações de calagem.

Heitor Cantarella, também é engenheiro agrônomo, mestre e doutor em agronomia pela Iowa State University. O pesquisador apresenta amplo conhecimento em fertilidade do solo, adubação e nutrição de culturas e já conquistou o Prêmio Heróis da Revolução Verde de 2015, o Prêmio IPNI em Nutrição de Plantas de 2016 e o Norman Borlaug Award de 2017 concedido pela FIA.

Dr. Quaggio, é pesquisador aposentado do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), e Dr. Cantarella é atualmente pesquisador no IAC e da Secretaria de Agricultura e abastecimento do Estado de São Paulo. Eles concederam em conjunto a seguinte entrevista para a AgriBrasilis.

 


 

AgriBrasilis – Qual foi a grande inovação em relação a fertilidade de solo que permitiu o cultivo no Cerrado?
Quaggio & Cantarella – As principais limitações à produção agrícola em larga escala nos solos sob vegetação de Cerrados são a deficiência de nutrientes e o excesso de acidez que limitam o crescimento das plantas e, por conseguinte, sua produtividade.

No passado, até o final dos anos setenta, pesquisadores e técnicos em fertilidade do solo se preocupavam apenas com a correção da acidez e o suprimento de nutrientes para a camada arável do solo.

O grande avanço no manejo de solos ácidos dos Cerrados veio após a descoberta pelo Dr. Fred Adams da Universidade do Alabama-EUA, nos anos 1970, que o excesso de alumínio e a deficiência de cálcio limitavam o crescimento radicular.

Essa base teórica mostrou que era necessário corrigir a acidez de camadas mais profundas e construir a fertilidade no perfil dos solos de tal forma a permitir a maior absorção e o aproveitamento da água de camadas mais profundas do solo.

Essa técnica é a estratégia mais eficiente para o agricultor reduzir as perdas de produtividade provocadas por períodos curtos de estiagem que sempre ocorrem nos Cerrados do Brasil Central.

Coordenei uma equipe de pesquisadores do Instituto Agronômico que conduziu cerca de sessenta ensaios de campo de longa duração, até final da década de noventa, com objetivo de descobrir como corrigir camadas mais profundas do subsolo com altas doses de calcário associadas ou não com o gesso agrícola.

Um desses ensaios foi instalado em 1977 em solo de Cerrado recém desbravado do Triângulo Mineiro e foi pioneiro em demonstrar que era possível produzir 3,0 t/ha de soja num primeiro ano de cultivo de solo de Cerrado. Para tanto, foi necessário aplicar e incorporar profundamente 9,0 t/ha de calcário rico em magnésio, cerca de 4 vezes superior às doses até então recomendadas.

Com essa dose de calcário foi possível corrigir a camada do subsolo até 80 cm de profundidade. Foi a primeira vez também que se demonstrou que o excesso de manganês em solos ricos nesse nutriente era outro freio à produtividade da soja em solos de Cerrados.

Depois disso, e após o desenvolvimento de métodos para a análise de micronutrientes no solo, foi possível descobrir que alguns solos de Cerrados são naturalmente deficientes em manganês e que a sua aplicação em conjunto com a adubação é fundamental para se obter boas produtividades.

 

AgriBrasilis – Quais os princípios do sistema de análise de solo desenvolvido pelo IAC? Como a pesquisa colaborou para o desenvolvimento de métodos de análise como as técnicas de calibração e de saturação de bases e o uso de gesso agrícola?

Quaggio & Cantarella – Numa segunda etapa de pesquisa iniciada na década de 70, uma nova equipe de pesquisadores do IAC, liderados pelo Dr Bernardo van Raij, iniciou um grande projeto de longa duração intitulado “ Fósforo e acidez”, o qual contava com recursos da recém-criada Embrapa.

Essa equipe instalou além da extensa rede de ensaios de calagem com várias culturas e regiões, ensaios de adubação com várias culturas com fósforo associado com outros nutrientes como nitrogênio e potássio, conhecidos como ensaios fatoriais, com o objetivo de obter-se a base experimental para o desenvolvimento de novos métodos de análises de solo e critérios mais seguros para a interpretação dos resultados.

Inicialmente foram testados os métodos disponíveis na literatura internacional, quase sempre desenvolvidos para solos de regiões de clima temperado, cuja base teórica era a solubilização de amostras de solo com soluções ácidas ou alcalinas, os quais se mostraram pouco eficientes para os solos tropicais e subtropicais brasileiros.

Daí, como quebra de um paradigma de solubilizar frações do solo com soluções ácidas para extrair os nutrientes, buscou-se um novo procedimento o que mais se assemelhava à extração dos nutrientes nos solos pelas raízes das plantas, baseado em resinas trocadoras de íons.
Essas resinas, por possuírem cargas elétricas, têm a capacidade de extrair nutrientes do solo por processos termodinâmicos muito semelhantes aos que ocorrem na interfase solo-solução do solo-raízes.

Desse projeto, após uma década de pesquisa foi desenvolvido o “Sistema IAC de análises de solo” que tem como base a extração dos nutrientes dos solos por resinas de troca de íons e recomendação de calagem pelo método da saturação por bases, que permite o cálculo da necessidade de calcário para diferentes camadas do subsolo com capacidade também de distinguir a tolerância das diferentes culturas à acidez dos solos.

Alguns anos depois foram incorporados ao “Sistema IAC de análises de solo” as análises de micronutrientes nos solos que trouxeram grande contribuição para o refinamento do diagnóstico das deficiências minerais dos diferentes solos brasileiros com forte reflexo na eficiência da produção agrícola.

Esse sistema foi lançado oficialmente em 1983 e vem sendo o mais utilizado até hoje nas principais regiões de agricultura avançada no Brasil, inclusive no semiárido brasileiro.

 

AgriBrasilis – O Brasil hoje domina a tecnologia para o manejo de solos tropicais? Quais as diferenças e qual a importância da adoção do sistema plantio direto e do sequestro de carbono na prática agrícola?

Quaggio & Cantarella – Toda tecnologia desenvolvida, algumas delas já descritas anteriormente, vem sendo aprimorada ao longo do tempo mediante a obtenção de novos resultados da pesquisa.

O plantio direto foi desenvolvido por agricultores paranaenses e de lá se espalhou por todo território brasileiro, inclusive no Brasil Central. Trata-se de técnica com grande eficiência na conservação do solo, da água e no sequestro de carbono.

Porém, nas regiões dos Cerrados brasileiros, especialmente naquelas de menor altitude e com período de estiagem mais prolongado, não é fácil produzir uma segunda safra sem irrigação, o que é fundamental para se produzir um bom volume de palha, requisito fundamental ao bom manejo de solos em sistema de plantio direto.

O que tem sido feito é o plantio de plantas de cobertura, como por exemplo o milheto, na véspera do plantio da cultura de soja de verão para produzir palha. Apesar dessas dificuldades, o plantio direto e outras técnicas de manejo que permitem a incorporação de matéria orgânica e a proteção dos solos vêm sendo bastante utilizadas no manejo dos solos dos Cerrados.

Bem administradas, estas opções permitem compatibilizar a necessária produção de alimentos e ainda estocar carbono no solo.

 

AgriBrasilis – Quais são os desafios para a agricultura no Cerrado no futuro frente às questões de sustentabilidade e superpopulação?

Quaggio & Cantarella – As produtividades das principais culturas nas regiões de Cerrados brasileiros estão atingindo níveis elevados, cada dia mais difíceis de serem superados. O potencial do Cerrado é enorme.

Vejo como grande desafio não somente ampliar a produtividade, mas também sustentar os níveis atuais. Isso porque os agricultores estão intensificando cada dia mais o uso do solo, buscando até três safras anuais com a prática da irrigação com pivô central.

Essa intensificação do uso do solo, leva à degradação de propriedades físicas dos solos. A compactação do solo é mais frequentemente observada nas áreas de produção. Alguns agricultores insistem no preparo convencional com uso contínuo de grades, que além de compactar destroem a estrutura do solo.

A intensificação do uso do solo tem provocado também acidificação de camadas mais profundas, devido principalmente à calagem na superfície e intensificação de adubação.

Além disso, é bastante comum atualmente a aplicação de fertilizantes a lanço, antes do plantio das culturas, para ganhar tempo de semeadura entre uma cultura e a subsequente.

Essa prática causa acúmulo de nutrientes nas camadas mais superficiais, especialmente de fósforo, que associado à acidez em profundidade, limitam o crescimento radicular, o que aumenta acentuadamente os riscos de perdas de produtividade provocadas por períodos de estiagem.

Portanto, o manejo do solo e das culturas deve ser constantemente aperfeiçoado e os esforços de pesquisa devem ter continuidade, incorporando e desenvolvendo inovações e aproveitando os enormes recursos que as tecnologias digitais, também conhecidas como agricultura 4.0, oferecem.

Isso, sem esquecer o básico. Manejos que evitem a compactação dos solos e que incorporem mais matéria orgânica de resíduos de cultura se tornam mais relevantes em sistemas intensivos de produção. Com isso, o Cerrado pode continuar a ser um importante celeiro do mundo e de forma sustentável.

 

Nota: ¹Embrapa Cerrado